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Acampamento Terra Livre 2022: As vozes do futuro


Alass Deriva/APIB

Mais de 8 mil originários de todo o país estão ocupando a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. São dezenas de caravanas organizadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), reunindo mulheres, homens e crianças, de todos os cantos do país. Com os trajes tradicionais de guerra, e o corpo com as pinturas de urucu e jenipapo. Caminham e caminham, levantando faixas e maracas. De suas bocas explode o grito contra todas as agressões seculares que os povos originários – indígenas, remanescentes de quilombos, extrativistas, ribeirinhos – vem sofrendo, mas que ganharam contornos de maior tragédia quando o governo Bolsonaro se instalou no Palácio do Planalto, desde de 2019. É o Acampamento Terra Livre (ATL), de 4 a 14 de abril, a maior mobilização nacional dos povos indígenas que desde 2004 é realizada durante o mês de abril, e que neste ano o tema é um chamado para a resistência também no parlamento com tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”, é o recado que está sendo dado aos milhares de indígenas em Brasília.



Imagem: Mídia Ninja

A data escolhida para o protesto não foi aleatória. Além de marcar o mês dedicado aos povos indígenas – 19 de abril é o chamado “Dia do Índio” -, as organizações representativas de 305 etnias miram no Congresso Nacional, onde tramita o chamado “pacote da maldade”, um conjunto de projetos que colocam em risco a existência destes povos e o próprio equilíbrio socioambiental do país e principalmente da Amazônia. Dentre outros, o Projeto de Lei 191/2020, que escancara as terras indígenas para mineração, encabeça a longa lista de maldades.


RIOS DE VENENO: MERCÚRIO, DOENÇAS, PROSTITUIÇÃO E VIOLÊNCIA


O rio Tapajós é o berço de civilizações milenares. Suas águas banharam incontáveis gerações desde os primeiros começos, num tempo em que história, tradição e mitologia se fundem e constituem a razão de ser de dezenas de etnias. São essas mesmas águas, manchadas pelos rejeitos da mineração clandestina e contaminadas por mercúrio, que escandalizaram o mundo no início deste ano quando atingiram a paradisíaca praia de Alter do Chão, em Santarém. O escândalo foi tamanho que o governo federal, sob pressão da sociedade civil e do Ministério Público Federal (MPF), precisou agir e realizar às pressas a Operação “Caribe Amazônico” contra o garimpo clandestino no território Munduruku, no munícipio de Jacareacanga, no médio Tapajós, onde a devastação atingiu níveis alarmantes. Nesta ação, com ampla cobertura da imprensa, foi destruído maquinário utilizado pelos garimpeiros, além de uma grande infraestrutura armada dentro da selva, que incluía supermercado e até igreja.



Operação “Caribe Amazônico” Imagem: Folha/Uol

Passado o choque, é muito provável que a atividade predatória tenha voltado a penetrar na floresta, alimentada por um círculo vicioso que se realimenta da falta de assistência às comunidades indígenas e do escandaloso desmonte da política de fiscalização ambiental, e sob as ordens do governo Bolsonaro que disse ainda em campanha eleitoral que acabaria com a “indústria de multas do Ibama”.



Povo Munduruku. Imagem: Anderson Barbosa

O povo Munduruku, no Pará, possui 140 aldeias e 14 mil pessoas. Suas lideranças lutam há anos contra a entrada de garimpeiros, mas nos últimos tempos a invasão abriu uma ferida no seio da comunidade. Calcula-se que entre 100 e 200 indígenas apoiem a atividade ilegal, tendo sido cooptados e instrumentalizados pelos donos dos maquinários e de toda a enorme logística que o garimpo movimenta. Estimulados pelo discurso do próprio presidente da República e de políticos e empresários locais, estes indígenas fomentam a divisão e praticam, em conluio com pistoleiros, atos de violência contra seus irmãos. Várias lideranças estão sob ameaça de morte, como é o caso de Alessandra Korap Munduruku e de Maria Leusa Munduruku, mulheres que honram a tradição guerreira deste povo e lideram a luta contra o garimpo. Não por coincidência, ambas sofreram agressões recentes, tendo suas casas invadidas e vandalizadas além da própria sede da associação de mulheres Munduruku em Itaituba.



Sede associação mulheres Munduruku de Itaituba. Imagem: Divulgação

É neste contexto que os indígenas retomam a caminhada e realizam a maior e mais importante mobilização contra as políticas de destruição do meio ambiente do governo.


BANDEIRA ENSANGUENTADA: LUTO, LUTA E ESPERANÇA


A imagem é impressionante: o Eixo Monumental, em Brasília, inundado por milhares de indígenas. No meio da multidão, sempre colorida e vibrante, surge uma bandeira nacional salpicada de vermelho para simbolizar que é sobre esse mar de sangue indígena que se construiu e ainda se ergue aquilo que conhecemos como Brasil. Essa mesma bandeira, momentos depois, foi hasteada por guerreiros no mastro principal em frente ao Congresso.



Foto: Ricardo Stuckert

Ninguém duvide que são os povos originários que hoje representam a principal frente de resistência às políticas perversas que sem exagero devem ser tratadas como genocidas. Não é apenas a extrema-direita dos Bolsonaro. A aliança pela devastação responde a amplos interesses econômicos e políticos. O garimpeiro ilegal que pratica toda sorte de abusos e violências no território Ianomâmi, por exemplo, é peça de uma engrenagem comandada de cima por senhores engravatados, confortavelmente instalados em seus escritórios na avenida Paulista, ou nos mais requintados edifícios dos Estados Unidos e da Europa.

A nossa luta indígena não pode ser acusada de exclusivista ou corporativa. Muito pelo contrário. As bandeiras do movimento a um só tempo defendem os direitos consagrados na Constituição, que expressamente assegura a nós indígenas a posse permanente de suas terras e a preservação de seus usos e costumes, como também alertam para a emergência climática que atinge nosso país e o mundo.

Por isso, uma das faixas carregadas pelos manifestantes é tão emblemática. “O futuro é indígena”, sim, porque simplesmente não haverá futuro para a humanidade se os povos originários forem exterminados.

A ATL 2022, mais uma vez, carrega muita dor em forma de protesto, mas não se trata de um movimento fundado na tristeza e na desesperança. Como nos ensinam os Guarani, a busca pela terra sem males (Yvy Mara Ey) permanece embalando nossos dias e noites. Para chegar lá, claro, é preciso ter força para jamais parar de caminhar. É essa lição de resiliência e fé no futuro que ecoa de Brasília e se transformará em vitoriosa semeadura se tocar os corações do restante do povo brasileiro.

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