Mais de 8 mil originários de todo o país estão ocupando a Esplanada dos Ministérios, em Brasília. São dezenas de caravanas organizadas pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), reunindo mulheres, homens e crianças, de todos os cantos do país. Com os trajes tradicionais de guerra, e o corpo com as pinturas de urucu e jenipapo. Caminham e caminham, levantando faixas e maracas. De suas bocas explode o grito contra todas as agressões seculares que os povos originários – indígenas, remanescentes de quilombos, extrativistas, ribeirinhos – vem sofrendo, mas que ganharam contornos de maior tragédia quando o governo Bolsonaro se instalou no Palácio do Planalto, desde de 2019. É o Acampamento Terra Livre (ATL), de 4 a 14 de abril, a maior mobilização nacional dos povos indígenas que desde 2004 é realizada durante o mês de abril, e que neste ano o tema é um chamado para a resistência também no parlamento com tema “Retomando o Brasil: Demarcar Territórios e Aldear a Política”, é o recado que está sendo dado aos milhares de indígenas em Brasília.
A data escolhida para o protesto não foi aleatória. Além de marcar o mês dedicado aos povos indígenas – 19 de abril é o chamado “Dia do Índio” -, as organizações representativas de 305 etnias miram no Congresso Nacional, onde tramita o chamado “pacote da maldade”, um conjunto de projetos que colocam em risco a existência destes povos e o próprio equilíbrio socioambiental do país e principalmente da Amazônia. Dentre outros, o Projeto de Lei 191/2020, que escancara as terras indígenas para mineração, encabeça a longa lista de maldades.
RIOS DE VENENO: MERCÚRIO, DOENÇAS, PROSTITUIÇÃO E VIOLÊNCIA
O rio Tapajós é o berço de civilizações milenares. Suas águas banharam incontáveis gerações desde os primeiros começos, num tempo em que história, tradição e mitologia se fundem e constituem a razão de ser de dezenas de etnias. São essas mesmas águas, manchadas pelos rejeitos da mineração clandestina e contaminadas por mercúrio, que escandalizaram o mundo no início deste ano quando atingiram a paradisíaca praia de Alter do Chão, em Santarém. O escândalo foi tamanho que o governo federal, sob pressão da sociedade civil e do Ministério Público Federal (MPF), precisou agir e realizar às pressas a Operação “Caribe Amazônico” contra o garimpo clandestino no território Munduruku, no munícipio de Jacareacanga, no médio Tapajós, onde a devastação atingiu níveis alarmantes. Nesta ação, com ampla cobertura da imprensa, foi destruído maquinário utilizado pelos garimpeiros, além de uma grande infraestrutura armada dentro da selva, que incluía supermercado e até igreja.
Passado o choque, é muito provável que a atividade predatória tenha voltado a penetrar na floresta, alimentada por um círculo vicioso que se realimenta da falta de assistência às comunidades indígenas e do escandaloso desmonte da política de fiscalização ambiental, e sob as ordens do governo Bolsonaro que disse ainda em campanha eleitoral que acabaria com a “indústria de multas do Ibama”.
O povo Munduruku, no Pará, possui 140 aldeias e 14 mil pessoas. Suas lideranças lutam há anos contra a entrada de garimpeiros, mas nos últimos tempos a invasão abriu uma ferida no seio da comunidade. Calcula-se que entre 100 e 200 indígenas apoiem a atividade ilegal, tendo sido cooptados e instrumentalizados pelos donos dos maquinários e de toda a enorme logística que o garimpo movimenta. Estimulados pelo discurso do próprio presidente da República e de políticos e empresários locais, estes indígenas fomentam a divisão e praticam, em conluio com pistoleiros, atos de violência contra seus irmãos. Várias lideranças estão sob ameaça de morte, como é o caso de Alessandra Korap Munduruku e de Maria Leusa Munduruku, mulheres que honram a tradição guerreira deste povo e lideram a luta contra o garimpo. Não por coincidência, ambas sofreram agressões recentes, tendo suas casas invadidas e vandalizadas além da própria sede da associação de mulheres Munduruku em Itaituba.
É neste contexto que os indígenas retomam a caminhada e realizam a maior e mais importante mobilização contra as políticas de destruição do meio ambiente do governo.
BANDEIRA ENSANGUENTADA: LUTO, LUTA E ESPERANÇA
A imagem é impressionante: o Eixo Monumental, em Brasília, inundado por milhares de indígenas. No meio da multidão, sempre colorida e vibrante, surge uma bandeira nacional salpicada de vermelho para simbolizar que é sobre esse mar de sangue indígena que se construiu e ainda se ergue aquilo que conhecemos como Brasil. Essa mesma bandeira, momentos depois, foi hasteada por guerreiros no mastro principal em frente ao Congresso.
Ninguém duvide que são os povos originários que hoje representam a principal frente de resistência às políticas perversas que sem exagero devem ser tratadas como genocidas. Não é apenas a extrema-direita dos Bolsonaro. A aliança pela devastação responde a amplos interesses econômicos e políticos. O garimpeiro ilegal que pratica toda sorte de abusos e violências no território Ianomâmi, por exemplo, é peça de uma engrenagem comandada de cima por senhores engravatados, confortavelmente instalados em seus escritórios na avenida Paulista, ou nos mais requintados edifícios dos Estados Unidos e da Europa.
A nossa luta indígena não pode ser acusada de exclusivista ou corporativa. Muito pelo contrário. As bandeiras do movimento a um só tempo defendem os direitos consagrados na Constituição, que expressamente assegura a nós indígenas a posse permanente de suas terras e a preservação de seus usos e costumes, como também alertam para a emergência climática que atinge nosso país e o mundo.
Por isso, uma das faixas carregadas pelos manifestantes é tão emblemática. “O futuro é indígena”, sim, porque simplesmente não haverá futuro para a humanidade se os povos originários forem exterminados.
A ATL 2022, mais uma vez, carrega muita dor em forma de protesto, mas não se trata de um movimento fundado na tristeza e na desesperança. Como nos ensinam os Guarani, a busca pela terra sem males (Yvy Mara Ey) permanece embalando nossos dias e noites. Para chegar lá, claro, é preciso ter força para jamais parar de caminhar. É essa lição de resiliência e fé no futuro que ecoa de Brasília e se transformará em vitoriosa semeadura se tocar os corações do restante do povo brasileiro.
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